16 fevereiro 2010

Alexandre e seu companheiro Bucéfalo

Muito, muito calor nas terras de Piratininga. Saudades de ti, Sampa veritas, minha terra da garôa. Para suportar esse Kalahari somente com um bom dry martini bem gelado a cada, digamos, 5 minutos.

Dia desses em passagem pelo Centro Cultural São Paulo para ver a exposição Quadrinhos Marginal - 40 anos o inusitado aconteceu, para variar, em meu caminho. E como não poderia deixar de ser, um gato permeou o ocorrido.
Sentado estava eu no Graffiti, restaurante do CCSP, degustando avidamente (leia-se devorando) meu fast-food ao mesmo tempo que lia um fascinante Austregésilo de Ataíde quando, de relance vi uma pessoa puxar conversa com o homem da mesa ao lado: - Boa tarde, poderia o senhor oferecer algo para mim e meu gato? - muito educadamente solicitou um andarilho. - Vá à m... seu vagabundo. Procura o que fazer, seu lixo, que não vai precisar me torrar o saco pedindo nada! - Escoiceou o cidadão sentado a mesa.

Pensei comigo: - Bastava um sincero "não".
Olhei o gato que o senhor tinha no colo, um tigrado belo e bem robusto, autivo e com ares de aristocrata, como todo gato deve ser. Respirei fundo e fechei os olhos para não me envolver num inútil bate-boca com um ser de espírito endurecido. Neste instante ouço o andarilho balbucear - Sors immanis et inanis - como? eu ouvi isso? o "vagabundo" soltou um latim mais que apropriado para seu momento desafortunado? (Sors immanis et inanis - Destino monstruoso e vazio) Levantei a cabeça e olhei para ele, que já estava saindo de lado. Falei: Dum vita est, spes est (Enquanto houver vida, há esperança) e convidei-o a sentar a minha mesa. Ele sorriu e com um balançar de cabeça elegante aceitou e sentou-se, ele e seu belo felino.

Pedi um salgado para o nobre vagabundo com café e um copo de leite para o bichano. Percebi que os garçons não gostaram da minha atitude mas para mim pouco me importou. Me apresentei e perguntei seu nome - Alexandre - ele disse. - E o bichano? - perguntei. - Bucéfalo - respondeu.
Sim. Nada mais apropriado que Bucéfalo para o companheiro de Alexandre. Percebía-se que o andarilho tinha alguma bagagem literária. Comeram cada um suas refeições enquanto eu prosseguia em minha leitura.

-Quer mais alguma coisa? - perguntei ao acabarem.
-uma chave de um cofre de banco, que tal? - sorrindo.
-Ab amicis honesta petamus (Só devemos pedir aos amigos coisas honestas) - respondi somente para ver sua reação.
Ele sorriu e desferiu - Homo hominis lupus (O homem é o lobo do homem) - e completou - A gente quer ser legal, mas a vida teima em tentar tirar da gente o que não presta.
-Sim, eu compreendo e concordo - disse-lhe.
E ele - A fronte praecipitium a tergo lupi (À frente, o precipício, às costas, os lobos.) - já se levantando.
Sorri pela resposta, adorei o bate-bola em latim, engalanou meu início de tarde, e justo com um improvável morador de rua, o inesperado acontecendo. Pensei ainda em perguntar como sabia latim, se teve uma educação em algum tradicional colégio de padres, ou quem sabe um professor universitário, por dado motivo, fracasssado; ou ainda quem sabe simplesmente achara um livro de sentenças em latim em algum latão de lixo. Não quis quebrar o momento e me calei, somente recebi seu agradecimento.

Ao se levantar Alexandre o tigrado pulou de seu colo, caminhou pela mesa maciamente, como todo gato deve caminhar, e roçou sua cabeça em meu braço. Vindo de um felino sabia ser um "obrigado" mais que sincero. E isso me completou o dia. Fiz um afago em Bucéfalo e deixei-o voltar para seu porto-seguro.
Ao saírem o cretino da mesa ao lado pronunciou, desta vez educadamente: - Era latim o que vocês estavam falando?
Observando todo aquele verniz e doçura direcionados a mim, vindo de alguém que a poucos instantes demonstrou tamanha rudeza com o desfavorecido, respondi: - Acta simulata substantiam veritatis mutare non possunt (Os atos simulados não podem mudar a substância da verdade.).
Ele retrucou: - desculpe-me, como?
-Sim, era latim. - confirmei, presenteando-lhe com um cínico sorriso.
-Nossa, que doidera. - revelando surpresa e confusão mental. - Detestava aulas de francês na escola. Imagina latim? - disse-me com cara de nojinho. E completou - Só aprendo o que me serve, e olhe lá.
-Docem velle summs est eruditio (numa tradução livre: o simples fato de buscar o conhecimento é a maior das sabedorias). - Sorrindo pra ele disse, preservando meu cinismo.
-Pra mim isso é marciano. - falou-me.
-Eu tenho certeza disso, colega. - Falei, já fechando minha conta e me despedindo do típico presunçoso ignorante.

Não saber de algo não é demérito, mas fazer pouco caso do conhecimento, tal como raposa diante das distantes uvas, é imbecilidade.
Voltei para casa com a impressão verdadeira de que a cada momento, em cada curva e esquina você pode se surpeender, e isso é o encanto da vida.
Atenção aos pequenos brilhantes que a vida oferece em nossa caminhada. São com eles que confeccionaremos o colar brilhante de nossa história.

aliena optimum frui insania (aprenda com o erro dos outros ou, traduzindo mais viceralmente, é bom aproveitar a loucura dos outros)
Fotos: as imagens do CCSP foram devidamente surrupiadas da web; sorry, mas não localizei os créditos das mesmas.

Musica de Fundo: Era - Hymne

13 fevereiro 2010

Algum dia, nas bibliotecas do Universo...

Sabe quando você mergulha em um lago profundo e gelado, e vai descendo vagarosamente para o escuro das águas? Sabe quando seu corpo desobedece e estanca em estranha letargia, em involuntária e desesperada paralisia motora e mental?
Vê a luz da superfície pouco a pouca rarear aos seus olhos, que indiferentes ao turbilhão que agita seu coração foca no vazio do desencato?

E esse mergulho, independente do tique-taque do relógio, parece-lhe demorar um outono inteiro? Sim, parece, não é mesmo?

Mas invariavelmente por um instinto de sobrevivência irracional, animal, que rompe a tecnicialidade, ele, seu corpo, dá um tranco, clama por oxigêncio, pelo fôlego da vida. E num impulso insano você sobe para a superfície. E o primeiro inspirar é ruidoso, grutal, feio mesmo. É a vida gritando revolta pelo movimento. Pelo movimento que é inerente a tudo que faz parte do universo, cada galáxia, cada sistema solar, cada planeta, asteróide, meteorito, poeira estelar se move, se expande e comprime insessantemente. E cada átomo, molécula, corpo ou pedra que se recusa a esse pulsar é sumariamente colocado a movimento ou sentenciado à eliminação, transformação e revida em movimento.


Pai, seu desencarne tão sentido e dolorido me fez submergir num lago gelado, mas sei que não gostarias de me assistir, de onde estiver, mergulhar no abismo do desencanto. Seguirei adiante, mais forte, mais intenso, mais verdadeiro a cada passo. E ao fim, quando finalmente nos reencontrarmos numa outra plaga, o abraçarei certo de seu orgulho pela tarefa cumprida de maneira edificante por seu filho.


Mi padre, mi amigo, sempre estarás em meu peito.
Nosso amor nos levará ao reencontro.
Nos veremos novamente nas bibliotecas do universo,
algum dia.
Toque mais uma vez, please: A Paz - Zizzi Possi