
Dia desses em passagem pelo Centro Cultural São Paulo para ver a exposição Quadrinhos Marginal - 40 anos o inusitado aconteceu, para variar, em meu caminho. E como não poderia deixar de ser, um gato permeou o ocorrido.

Pensei comigo: - Bastava um sincero "não".
Olhei o gato que o senhor tinha no colo, um tigrado belo e bem robusto, autivo e com ares de aristocrata, como todo gato deve ser. Respirei fundo e fechei os olhos para não me envolver num inútil bate-boca com um ser de espírito endurecido. Neste instante ouço o andarilho balbucear - Sors immanis et inanis - como? eu ouvi isso? o "vagabundo" soltou um latim mais que apropriado para seu momento desafortunado? (Sors immanis et inanis - Destino monstruoso e vazio) Levantei a cabeça e olhei para ele, que já estava saindo de lado. Falei: Dum vita est, spes est (Enquanto houver vida, há esperança) e convidei-o a sentar a minha mesa. Ele sorriu e com um balançar de cabeça elegante aceitou e sentou-se, ele e seu belo felino.
Pedi um salgado para o nobre vagabundo com café e um copo de leite para o bichano. Percebi que os garçons não gostaram da minha atitude mas para mim pouco me importou. Me apresentei e perguntei seu nome - Alexandre - ele disse. - E o bichano? - perguntei. - Bucéfalo - respondeu.
Sim. Nada mais apropriado que Bucéfalo para o companheiro de Alexandre. Percebía-se que o andarilho tinha alguma bagagem literária. Comeram cada um suas refeições enquanto eu prosseguia em minha leitura.
-Quer mais alguma coisa? - perguntei ao acabarem.
-uma chave de um cofre de banco, que tal? - sorrindo.
-Ab amicis honesta petamus (Só devemos pedir aos amigos coisas honestas) - respondi somente para ver sua reação.
Ele sorriu e desferiu - Homo hominis lupus (O homem é o lobo do homem) - e completou - A gente quer ser legal, mas a vida teima em tentar tirar da gente o que não presta.
-Sim, eu compreendo e concordo - disse-lhe.
E ele - A fronte praecipitium a tergo lupi (À frente, o precipício, às costas, os lobos.) - já se levantando.
Sorri pela resposta, adorei o bate-bola em latim, engalanou meu início de tarde, e justo com um improvável morador de rua, o inesperado acontecendo. Pensei ainda em perguntar como sabia latim, se teve uma educação em algum tradicional colégio de padres, ou quem sabe um professor universitário, por dado motivo, fracasssado; ou ainda quem sabe simplesmente achara um livro de sentenças em latim em algum latão de lixo. Não quis quebrar o momento e me calei, somente recebi seu agradecimento.
Ao se levantar Alexandre o tigrado pulou de seu colo, caminhou pela mesa maciamente, como todo gato deve caminhar, e roçou sua cabeça em meu braço. Vindo de um felino sabia ser um "obrigado" mais que sincero. E isso me completou o dia. Fiz um afago em Bucéfalo e deixei-o voltar para seu porto-seguro.

Observando todo aquele verniz e doçura direcionados a mim, vindo de alguém que a poucos instantes demonstrou tamanha rudeza com o desfavorecido, respondi: - Acta simulata substantiam veritatis mutare non possunt (Os atos simulados não podem mudar a substância da verdade.).
Ele retrucou: - desculpe-me, como?
-Sim, era latim. - confirmei, presenteando-lhe com um cínico sorriso.
-Nossa, que doidera. - revelando surpresa e confusão mental. - Detestava aulas de francês na escola. Imagina latim? - disse-me com cara de nojinho. E completou - Só aprendo o que me serve, e olhe lá.
-Docem velle summs est eruditio (numa tradução livre: o simples fato de buscar o conhecimento é a maior das sabedorias). - Sorrindo pra ele disse, preservando meu cinismo.
-Pra mim isso é marciano. - falou-me.
-Eu tenho certeza disso, colega. - Falei, já fechando minha conta e me despedindo do típico presunçoso ignorante.
Não saber de algo não é demérito, mas fazer pouco caso do conhecimento, tal como raposa diante das distantes uvas, é imbecilidade.
Voltei para casa com a impressão verdadeira de que a cada momento, em cada curva e esquina você pode se surpeender, e isso é o encanto da vida.
Atenção aos pequenos brilhantes que a vida oferece em nossa caminhada. São com eles que confeccionaremos o colar brilhante de nossa história.
aliena optimum frui insania (aprenda com o erro dos outros ou, traduzindo mais viceralmente, é bom aproveitar a loucura dos outros)
Fotos: as imagens do CCSP foram devidamente surrupiadas da web; sorry, mas não localizei os créditos das mesmas.
Musica de Fundo: Era - Hymne